segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Vitoriosa, Cristina Kirchner quer tirar da Argentina o estigma do fracasso

William Waack

Atualizado em 29/10/2007 - 20:02

Tem um lado positivo a apatia com que foi recebida na Argentina a eleição, pela primeira vez, de uma mulher para a presidência do nosso mais importante vizinho. “Decepção costuma ser o que se recebe pela esperança”, dizia (há 80 anos) o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, já então profundamente fascinado pela incapacidade argentina de se transformar no que prometia ser: um país do primeiro mundo.

É interessante notar que em toda a campanha eleitoral Cristina Fernandes de Kirchner evitou ser associada à palavra “esperança”. “La Dama de la Esperanza” era outra mulher que teve muito poder na Argentina: Evita Perón. Associada, além disso, a outro lema político que ninguém mais usou no país: “hacia un futuro mejor”.

Foi inteligente por parte de Cristina Kirchner evitar comparações com as duas outras mulheres que mandaram no país. Além do mito e da lenda, lembra o historiador argentino Felix Luna, Evita ficou conhecida como uma personalidade “cheia de rancores e ternura, íntegra e sem escrúpulos, inculta e inteligentíssima” – e por sua capacidade de articular nomeações e decisões de bastidores, que levaram a uma tragédia política.

Evita morreu cedo, mas sua sucessora na Casa Rosada, uns 20 anos depois, virou um nome associado a um dos piores momentos da recente história do país. Isabelita Perón presidiu um caos que desembocou numa das mais sanguinárias ditaduras militares do continente. Foram três anos críticos, diz o mesmo Felix Luna (autor de uma clássica trilogia, “Perón y su tiempo”), seguidos dos mais terríveis anos.

Há um problema central em toda historiografia argentina, que é o de tentar identificar e entender as causas que levaram um dos países mais ricos e exuberantes do início do século 20 a se transformar num dos casos mais espetaculares de fracasso ainda no mesmo século. “O fracasso da Argentina tornou-se um mistério histórico, como o declínio da Espanha ou o eclipse do liberalismo germânico”, assinala o historiador britânico Felipe Fernandez-Armesto em seu celebrado “Milênio”.

Néstor Kirchner chegou à presidência de um país fixado num passado que sempre pareceu ter sido muito melhor (para comparação, no Brasil sempre achamos que o futuro será melhor) e que acabava de sair de mais um caos político e econômico, durante o qual ficaram patentes (estamos falando do período 2000 a 2002) as fragilidades das instituições políticas e, em especial, da economia.

Kirchner desafiou as convenções econômicas ao desafiar o FMI e alguns de seus principais credores. O crescimento econômico do período mais recente parece dar razão aos que dizem que a coragem argentina foi recompensada. O teste virá logo nos próximos dias, quando Cristina Kirchner tiver de renegociar parte da dívida com o Clube de Paris (que reúne os credores públicos) e com os credores privados que continuam brigando contra o calote de 6 anos atrás – para liquidar essa fatura, e atrair investidores e capital estrangeiro, a Argentina terá de se entender de alguma maneira com o... FMI.

Cristina Kirchner propõe um pacto social com os sindicatos que faz os historiadores lembrarem outro pacto, o de 1973, que terminou em inflação galopante – e inflação é um dos piores problemas com os quais ela terá de lidar, especialmente se pensar em suspender os controles de preços e a manutenção de tarifas artificialmente baixas para o setor de energia, à beira de um seriíssimo apagão.

Um dos “spots” da propaganda televisiva de Cristina Kirchner durante a campanha tinha como personagem uma Dolores Argentina, uma garotinha nascida no meio do grande caos de dezembro de 2001. “Hoje Dolores Argentina é uma menina normal”, dizia a propaganda política dos Kirchner, “e a coisa mais importante é que Dolores continua crescendo”.

Talvez seja peculiar à Argentina prometer mudanças fazendo mais do mesmo – que parece ser, até agora, a “receita” apresentada por Cristina Kirchner. É interessante notar a insistência com que ela (a exemplo do que fez o marido) repete que o país merece, sobretudo, mais respeito. Não é apenas uma questão ligada ao famoso orgulho argentino.

É a idéia de que a Argentina quer se livrar da noção de que sua história contemporânea seria, na percepção dos próprios argentinos, o caminho de fracasso em fracasso.

Fonte:

http://williamwaack.globolog.com.br/

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